segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Dois minutos para o primeiro ato.

Por favor, mia Donna, sei que é tarde, mas também sei que explicações reclamam uma origem.

Poderia ele, como Fédon a Equécrates, apressar-se em demandar total fiducidade, autoridade por ter visto (ou sentido), enfim: na resposta ao “estiveste tu mesmo, ou ouviste de alguém” vestir um possante “não, eu mesmo”? Sabemos pouco sobre sua condição. Mas de todas as informações que temos, ao menos uma é tida como certa: ele não esteve lá.

Abrimos, assim, nossas primeiras folhas por um pacto entre mentirosos e livres espíritos.

I.

Olhos no espelho. Ele vê alegria, poeira na pele, traços fortes, cores zangadas. Pouco mudou, ainda. Não era o que esperava, mal conseguia se enxergar no texto. Precisa olhar mais fundo, pensa. Encontrar o que não é dentro de si mesmo. Fixo nos próprios olhos, a buscar as circunstâncias, os momentos, talvez até os contextos, as intrigas (quem dera, aquele afável enredo das paixões!), espera seguir os rastros dos faros e das graças que o apreenderam artista.

– de resto, apenas o Silêncio.  

II.

Levanta-se, ao palco. Olhos e punhos cerrados com força. Agora não se sente mais só. Agora já não está mais só. Conheceu esse outro ao relembrar que tal máscara jamais deixou de estar lá. Tocou o íntimo e a intimidade lhe respondeu com olhares brilhosos. Terá de viver assim pelos próximos trinta minutos: o Triste Clown pode ser encenado.

– de sobra, foi o Motim.

III.

Daquilo que sabemos sobre o Agente e o Triste Clown – eternos personagens de nosso esquecimento – pode-se talvez debater algumas de suas idéias. Nas margens do texto de uma peça encontraram-se algumas anotações. Em uma das mais estudadas, lia-se, dizem os eruditos, algo como aquilo que não se é está dentro de si mesmo. Estranha recorrência da sensibilidade artística. Afirmar a presença/negar a ausência, o binômio do representar como um processo de distanciamento que é, como que em uma experiência gnóstica, nada mais do que o reencontro do espírito consigo mesmo. Mas que espírito? Ou, talvez seja melhor perguntar, o que carrega esse espírito?

Atravessamos, então, as páginas de todo o primeiro ato por uma tese grafada numa mentira que só pode ser proferida pelo recurso à realidade.

O resto pouco nos interessa, senão a natureza dessa realidade...  

IV.

No seu Gestum Viritim, o Agente e o Triste Clown encenam um longo monólogo. A peça, glosada de um conjunto não catalogado de poemas goliardos, os quais infelizmente parecem ter se perdido, trás certamente muitos elementos da obra medieval. A construção dos sujeitos é mediada de certa forma pelo texto que, estranhamente, no entanto parece tomar vida ao dissertar, descrever e passear sobre personagens, imagens, ruídos e experiências exógenas a Paris do século XIII. Tal coisa, esse efeito de palimpsesto, não poderia manifestar-se sem tamanha paixão.  

Vimos como o ato de mentir – ou seja, a criação – carrega o conteúdo do espírito, da vontade auto-imaginada do artista. Aqui ele o vê correlato a si mesmo, distanciado do exterior, em um movimento que, de forma circular, projeta uma Fuga Mundi para, nos subúrbios do ego, captar uma imagem e cuspi-la para fora. O resultado é aquilo que Benjamin chamou de Aura. Tudo isso é apenas idéia. O fundo opaco de uma intencionalidade.

V.

Está a intencionalidade amarrada, em seu fim turvo, a uma substância real? Difícil dizer qual. Mesmo que o Agente e o Triste Clown tivessem nos deixado maiores registros sobre suas vidas, o mais complexo, como não poderia deixar de aparentar, seria traçar as ligações entre a identidade de um e de outro. Suas experiências compartilhadas seriam, aqui, certamente muito úteis. Disso podemos ao menos levantar uma asserção: não apenas um não pode sobreviver sem o outro, como, principalmente, um jamais conseguiu viver sem fazer viver o outro – mesmo o elo mais fraco, aquele que deveria durar apenas poucos minutos ao dia, acabou por predominar ao final da vida dos dois: o Agente, dominado por uma verdade que deveria lhe ser alternativa, transformou-se assim em um grande mentiroso: o Triste Clown sabotou-lhe a psique, interditou-lhe os sentidos e solapou-lhe a consciência.

Terminaram seus dias numa casa de repouso em Geraardsbergen, lendo Tristes Trópicos e embriagando-se com a cerveja da abadia local.       

Aos olhos do esclarecimento, a mentira escravizou a verdade – de resto, ignoraram os sons e o sofrer daquilo que considerariam para sempre resultado da bruxaria ou da paranóia.

Fascinados pela frieza da coerência analítica, presos aos menires do tradicional, axiomatizando a todos em estruturas que remontam à própria língua, os seres desprovidos de paixão julgaram-lhes incoerentes e incapazes de procriar.

E foi apenas sem filhos que sua paixão, relegada ao esquecimento, conseguiu reproduzir-se.      

VI.

E então, mia Donna, explico-lhe como o mais humano pode, facilmente, ser destratado como a mais abominável das criações de lúcifer? Ah, seres desprovidos de paixão, nenhum deles sente a dimensão contraditória como a origem do belo...

Mas eu sei que tu sentes...  

 

 

 

Um comentário:

Nivaldo Nicoliche disse...

Esta fiducidade que encanta, acalenta e sonha. Tal qual um voltímetro aferido em sua última escala residual por histerese em uma bomba de recirculação de lodo que seja.