segunda-feira, 30 de junho de 2008

Ao Russo, as baratas

O vizinho da mesa ao lado suspirou, desconsolado, e pediu uma Brahma. A Original estava em falta, culpa do fornecedor, disse-lhe dona Ivone. Acontece sempre. Quis também que fritassem umas batatas, como já havia tomado seis cervejas, regra da casa, cortesia, esses troços. Geralmente vinham cheias de sal. Sede era bom pro Russo. Resolvi aproveitar e pedir também um cinzeiro, fumar um charuto de três pila antes da aula, costume local. Era até difícil se locomover nos fundos do bar, com tanta gente apinhada pelos cantos e pelos corredores, queimando um, a tocar violão e cantando de forma rouca. Não tinha nenhuma ninfeta bonitinha. Só um bando de cabeludos das ciências sociais, fãs de samba roque e Chico Buarque. Essa gente que vive da memória de uma 68 que nunca viveu. Voltei pra mesa da diretoria.

Era assim que o Russo chamava a tábua mais próxima da copa, dentro do boteco. Quem se acomodava por lá tinha o compromisso de ouvir as mais exaltadas histórias do anfitrião. Era bom para fugir dos mosquitos. No fim da tarde eles são cruéis. Sorte que não estamos no Rio de Janeiro, pois lá ia ser uma comoção.

“Fala grande”, disse-me um dia, “não sei se vocês fumam essas porcarias, mas eu acho uma droga; quem se atira nisso precisa recuperar a dignidade de ser humano”. Dei uma bela risada – afinal, são esses indignos que pagam todas as contas por lá – e expliquei-lhe que tenho asma e que fico chapado só com a fumaça dos charutos, no estilo oitocentista de ser. Aproveitei para contar que era estudante de jornalismo e escreveria sobre ele. Pareceu gostar da idéia. Bom para mim.

O Bar do Russo é um boteco localizado atrás da PUCRS, na Bento Gonçalves. Rivaliza com outros nomes como o Mazá e o Isbórnia. Mas o Russo é diferente. É um boteco de verdade, com cheiro de fritura, cerveja barata e baratas nas cervejas. Lá se encontra igualmente uma boa dose de companheirismo; afinal, é freqüentado pelo lado alternativo da universidade católica. Sabe aquelas figuras que vagam pelo campus, te chamam a atenção e, por fim, te fazem pensar que nunca vai poder conhecê-las? No Russo se acha uma desculpa. No meu caso, ao menos, geralmente todas elas acabam parando lá. O clima de socialização começa – como não poderia deixar de ser – pelo dono do lugar, não só porque ele chama todo mundo de “grande”, mas também porque manda falar.

Descobri que ele se chama Teodoro Klovan. A família, como gosta de dizer, veio da Rússia. Na verdade seus pais nasceram em lugares distintos. A mãe morava em Odessa, hoje Ucrânia; o pai, na Moldávia, antiga Bessarábia, minúsculo país na fronteira entre sua pátria materna e a terra do conde Drácula. Em suma, saíram do fim do mundo e vieram parar no lugar aonde Judas perdeu as botas: Santa Rosa, 1913 e 1927, respectivamente.

“Seu Teodoro”, resmungou Ivone, “não te esqueces do dinheiro dos ovos e dos pães.” Ela ainda acrescentou um “como fala esse homem”, mas o comentário foi aparentemente ignorado por todos. Enquanto ele exaltava as qualidades do governo Lula, criticava a roubalheira no Departamento de Trânsito e falava contra a corintiana que nos elegeram como governadora, eu esquadrinhava meu interlocutor. Mais do que um Russo, parecia um bolchevique. Rosto branco, pálidos olhos azuis que desafiavam a astúcia daqueles que lhe dirigiam a palavra, barba e cabelos quase unos, já que brancos, que lhe conferiam uma aparência romântica. Não parava de me surpreender com a veemência dos gestos, caros aos políticos da era da política, fortes, seguros, quase retóricos por si só. Assustei-me quando disse que tinha 64 anos. Quis saber de sua juventude. Perguntei se fora militante comunista, anarquista, ou sei-la-o-quê.

“Nunca fui comunista. Sempre fui a favor da livre-iniciativa, mas com justiça social. Na minha época, a gurizada ia pra rua, botava fogo em tudo, reformas de base, protestos. Mas daí fizeram uma tal de revolução – deram um golpe – e veio os anos de obscuridade. O Russo, que não é bobo, ficou calado.”

Assim, lembrou os companheiros que, depois de anos penando na era Sarney, Collor e FHC, finalmente juntou os trocados que restavam e resolveu montar um bar. Seu Teodoro tinha chegado na cidade no ano de 1954. Porto Alegre ainda era uma vila fétida, na qual a lepra e a tuberculose enfileiravam centenas no Sanatório Parthenon. Veio fugido do campo. Com oito irmãos, os 30 hectares que o pai possuía eram insuficientes para uma herança de família. Chegou na época do boom metropolitano, junto com milhares de camponeses e filhos de ex-colonos. Mas não teve uma experiência estritamente proletária, como muitos outros. Logo mostrou talento para o artesanato e rapidamente galgou posições em meio a aristocracia política local. Foi alfaiate de Euclides Triches, governador, e de Josué Guimarães, diretor do Correio do Povo, Rede Manchete, Voz do Brasil e famoso escritor. Vivia no palácio Piratini.

Naquele momento, percebi que uma voz familiar, vinda da mesa de trás, mostrava também muito interesse na discussão. Fazia perguntas, por vezes me interrompia, ou ao Russo, em momentos que se deviam julgar bem impróprios. De soslaio, virei os olhos. Era um colega meu. Ficou reclamando que eu havia roubado a idéia dele. E ia fazer o perfil dele. E que os trabalhos iam ficar iguais. Perguntou se eu ia realizar menções ao uso de drogas no bar e ao que o Russo achava disso. Queria saber quanto o boteco faturava, quantas caixas de cerveja ele vendia por mês. Coisas que não me interessavam muito. Dimensão contraditória do sujeito, eu pensei. Não disse nada, ele ficou olhando. Instantes depois, eu deixei escapar, em voz alta, “dimensão contraditória do sujeito”. Acho que ele não entendeu muito bem.

Tentei voltar à época do Twist. Pedi para seu Teodoro falar dos anos 50, Era James Dean, Fox Trot, bailes com jaqueta de couro e danças com sapatos especiais. Mostrou-me uma foto, sujeito bonitão, bem como eu imaginei, P&B grande, com ares de fase-de-ouro-de-Holywood. Um verdadeiro pão. Por aqueles tempos o Russo tinha dinheiro, alfaiate da elite cultural e política – que no caso do Rio Grande do Sul positivista são indissociáveis –, possuía todas as mulheres aos seus pés. “Todas queriam dançar o Twist com o Russo, eu era o rei da dança, vivia nas festas”. Fiquei imaginando ele com um pente no bolso, um tubo de gel à mão, uma faca na jaqueta, calças jeans, Aeroillis zero, motor V8 canadense e muito amor a dar.

Chegou o fornecedor. Segunda entrega do dia, e nada de Original. A essas alturas, não podia reclamar, já estava duro e bêbado. O gosto de repolho da Brahma parecia muito com a Leffe Blonde. Meu colega havia ido embora e eu mal percebi. Já estava quase na hora de reclamar uma segunda batata-frita, então fiquei mais um pouco.

Um sujeito cambaleante, figura clássica do bar, veio pedir outra cerveja. “Fala grande”, aquela coisa toda, e lembro-me do cara no dia em que confundiu um amigo meu com certo detetive particular. Quase deu briga. Seus pais o haviam botado na cola dele, acreditava. Se ele estava assim desse jeito hoje é por culpa do tal detetive, exaltava-se. Certamente estava tendo problemas com drogas pesadas. Achei aquilo tudo muito engraçado. O sujeito era magro, quase esquálido, branquíssimo e com uma cara de sonso que dava pena. Lembrei da dignidade de ser humano e o associei com um galo de rinha turbinado por anabol, só que sem penas. Ele pagou a cerveja e voltou pro fundo do bar.

Perguntei pro Russo o que ele fazia se os beberrões passavam da conta. “Não vendo além daí”, explicou-me, “não vou ganhar um pila a mais pro cara atravessar a rua e morrer atropelado, simplesmente digo que vá embora, que já deu por hoje.” Limite moral da livre-iniciativa, pensei. Afinal de contas, até que o seu Teodoro é uma pessoa muito coerente.

O movimento do bar foi aumentando, o Russo tinha que trabalhar. Transferi-me da mesa da diretoria para os bancos do lado de fora. Era quase hora da aula e talvez alguma ninfeta já tivesse chegado por lá.

3 comentários:

naubergs disse...

Eu estava lá a atesto que tudo que foi dito é verdade.

chefdenis disse...

O Russo sempre foi um alfaiate de excepcional qualidade. Lembro-me dele atuando na Alfaiateria na Rua da Praia, quase esquina com a Gen Portinho. Ele foi um aprendiz do alfaiate italiano Salvatore, e do Nicola Cassarà.
Tinha vários dons, sendo que um deles era a simplicidade nas atitudes e nas ações. Um excelente ouvinte e amigo.
Foi quem confeccionou o meu primeiro "terno" nos idos de 1960 para a minha formatura no Colégio das Dores.
Tive a oportunidade de manter com ele uma amizade muito grande àquela época e que se estendeu até sua transferência da alfaiataria para a Gal. do Rosário. Neste tempo ele casou e eu fui me especializar na Escola Técnica Parobe em Eletro tendo me formado em 1964.
Saudades do amigo e confidente nas tardes do Portinho.
"Grande" pessoa!!!
Denis Carravetta Corá

Felipe F. Klovan disse...

Na verdade, ele não foi aprendiz do Salvatore. Foi o Salvatore que foi aprendiz do Teodoro Klovan, vulgo Russo. O Russo aprendeu o ofício com o seu irmão mais velho.