sábado, 18 de outubro de 2008

Algo mendiga atenção, um algo dentro de mim. Não entendo como deveria ser, voz aguda, penetrante, como uma faca resvalada entre meus órgãos, faz minha carne vibrar no mesmo ritmo em que se põe a gemer. Dói, mas a dor que não é tragédia, de um sofrimento sem resolução.  Uma certeza há: alguma coisa quer ser dita, e eu espero, impaciente, por uma utópica revelação.   

Enfraqueço, mal respiro. Assim que solto o ar, meu peito chia, minha barriga estufa-se em um fogo gélido. Algo como uma paixão às avessas, náuseas e calafrios: estranha identidade de emoções. Não posso negar que sinto, passeando por minha espinha, a mesma sensação de estar apaixonado, logo agora, a poucos segundos de vomitar em desespero. Abraço meu corpo como se fosse a mulher amada. Apenas me sinto ainda pior.  

Pílulas, livros, memórias no papel. Tudo passa. Por enquanto, ignoro a linguagem do espírito. Sigo acreditando na vida. O esquecimento carrega o segredo da credulidade.  

Mas por quanto tempo? Qual dia terei, por fim, uma grande epifania? 

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Ah, querer! não, nada teve a ver com o querer. Mas como quis de outro modo? Não seria a sinceridade espécie de droga, como substância capaz de existir, de uma vez remédio e, de outra, veneno? Ambígua, sim, às vezes do pharmakon platônico. Nela, não apenas suas palavras, mas antes suas vontades mais íntimas conspiraram para empeçonhentar tais corações sobressaltados. 

Bah! Verdades das quais o mundo ri e não pode aceitar. Que a vergonha é o prazer acovardado. E que a culpa é como a morte querendo viver. E cuja Donna por demais amada precisa, para a realização plena de sua identidade - do âmago justo daquilo que se adora -, ser deixada livre, admirada de longe, por vezes em quase segredo, apenas. Só assim, ela, a musa desejada, pode se determinar e se manifestar como cada vez mais Ela - o próprio objeto do desejo.
 
A paixão corta, oprime, dilacera, complexifica, por fim, domina, maltrada, coloniza, modifica. O amor é pura contemplação. 
Mas podem os dois não coexistir? Essa é a semente que atormenta minhas noites, transforma pagus e esperanças em ruínas ancestrais, fertilidade em inércia, brilho em opacidade. 

E como pensar a normalidade patológica de tamanho culto à liberdade, aos desejos individuais, à ode do sujeito como fragmento? Digo doentio porque fadada a deteriorar, sistematicamente contraditória, incapaz de satisfazer-se senão como reprodução do próprio desejo de se satisfazer. 

Mas amar não pode ser diferente; nada senão o prazer doloroso de observar a satisfação do outro, ou morrer na ansiedade de nunca percebê-la senão como eterna e incipiente potência.

O que pode esperar o justo espírito senão, um dia, encontrar esse fardo, que tanto lhe habita o peito, também em outrem? Afinal, se me perguntas o que acho do individualismo, dir-lhe-ei, de uma só palavra, que acredito ser impossível para uma pessoa colocar flores no seu próprio túmulo. 
E nada nesse mundo se faz sem uma bela lápide florida.  

  

Dois minutos para o primeiro ato.

Por favor, mia Donna, sei que é tarde, mas também sei que explicações reclamam uma origem.

Poderia ele, como Fédon a Equécrates, apressar-se em demandar total fiducidade, autoridade por ter visto (ou sentido), enfim: na resposta ao “estiveste tu mesmo, ou ouviste de alguém” vestir um possante “não, eu mesmo”? Sabemos pouco sobre sua condição. Mas de todas as informações que temos, ao menos uma é tida como certa: ele não esteve lá.

Abrimos, assim, nossas primeiras folhas por um pacto entre mentirosos e livres espíritos.

I.

Olhos no espelho. Ele vê alegria, poeira na pele, traços fortes, cores zangadas. Pouco mudou, ainda. Não era o que esperava, mal conseguia se enxergar no texto. Precisa olhar mais fundo, pensa. Encontrar o que não é dentro de si mesmo. Fixo nos próprios olhos, a buscar as circunstâncias, os momentos, talvez até os contextos, as intrigas (quem dera, aquele afável enredo das paixões!), espera seguir os rastros dos faros e das graças que o apreenderam artista.

– de resto, apenas o Silêncio.  

II.

Levanta-se, ao palco. Olhos e punhos cerrados com força. Agora não se sente mais só. Agora já não está mais só. Conheceu esse outro ao relembrar que tal máscara jamais deixou de estar lá. Tocou o íntimo e a intimidade lhe respondeu com olhares brilhosos. Terá de viver assim pelos próximos trinta minutos: o Triste Clown pode ser encenado.

– de sobra, foi o Motim.

III.

Daquilo que sabemos sobre o Agente e o Triste Clown – eternos personagens de nosso esquecimento – pode-se talvez debater algumas de suas idéias. Nas margens do texto de uma peça encontraram-se algumas anotações. Em uma das mais estudadas, lia-se, dizem os eruditos, algo como aquilo que não se é está dentro de si mesmo. Estranha recorrência da sensibilidade artística. Afirmar a presença/negar a ausência, o binômio do representar como um processo de distanciamento que é, como que em uma experiência gnóstica, nada mais do que o reencontro do espírito consigo mesmo. Mas que espírito? Ou, talvez seja melhor perguntar, o que carrega esse espírito?

Atravessamos, então, as páginas de todo o primeiro ato por uma tese grafada numa mentira que só pode ser proferida pelo recurso à realidade.

O resto pouco nos interessa, senão a natureza dessa realidade...  

IV.

No seu Gestum Viritim, o Agente e o Triste Clown encenam um longo monólogo. A peça, glosada de um conjunto não catalogado de poemas goliardos, os quais infelizmente parecem ter se perdido, trás certamente muitos elementos da obra medieval. A construção dos sujeitos é mediada de certa forma pelo texto que, estranhamente, no entanto parece tomar vida ao dissertar, descrever e passear sobre personagens, imagens, ruídos e experiências exógenas a Paris do século XIII. Tal coisa, esse efeito de palimpsesto, não poderia manifestar-se sem tamanha paixão.  

Vimos como o ato de mentir – ou seja, a criação – carrega o conteúdo do espírito, da vontade auto-imaginada do artista. Aqui ele o vê correlato a si mesmo, distanciado do exterior, em um movimento que, de forma circular, projeta uma Fuga Mundi para, nos subúrbios do ego, captar uma imagem e cuspi-la para fora. O resultado é aquilo que Benjamin chamou de Aura. Tudo isso é apenas idéia. O fundo opaco de uma intencionalidade.

V.

Está a intencionalidade amarrada, em seu fim turvo, a uma substância real? Difícil dizer qual. Mesmo que o Agente e o Triste Clown tivessem nos deixado maiores registros sobre suas vidas, o mais complexo, como não poderia deixar de aparentar, seria traçar as ligações entre a identidade de um e de outro. Suas experiências compartilhadas seriam, aqui, certamente muito úteis. Disso podemos ao menos levantar uma asserção: não apenas um não pode sobreviver sem o outro, como, principalmente, um jamais conseguiu viver sem fazer viver o outro – mesmo o elo mais fraco, aquele que deveria durar apenas poucos minutos ao dia, acabou por predominar ao final da vida dos dois: o Agente, dominado por uma verdade que deveria lhe ser alternativa, transformou-se assim em um grande mentiroso: o Triste Clown sabotou-lhe a psique, interditou-lhe os sentidos e solapou-lhe a consciência.

Terminaram seus dias numa casa de repouso em Geraardsbergen, lendo Tristes Trópicos e embriagando-se com a cerveja da abadia local.       

Aos olhos do esclarecimento, a mentira escravizou a verdade – de resto, ignoraram os sons e o sofrer daquilo que considerariam para sempre resultado da bruxaria ou da paranóia.

Fascinados pela frieza da coerência analítica, presos aos menires do tradicional, axiomatizando a todos em estruturas que remontam à própria língua, os seres desprovidos de paixão julgaram-lhes incoerentes e incapazes de procriar.

E foi apenas sem filhos que sua paixão, relegada ao esquecimento, conseguiu reproduzir-se.      

VI.

E então, mia Donna, explico-lhe como o mais humano pode, facilmente, ser destratado como a mais abominável das criações de lúcifer? Ah, seres desprovidos de paixão, nenhum deles sente a dimensão contraditória como a origem do belo...

Mas eu sei que tu sentes...